segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Vale usar o calor do verão para lembrar do aquecimento global?

 
Dados preliminares da Nasa (agência espacial americana) e da Noaa (agência de oceanos e atmosfera) mostram que 2016 vai bater o terceiro recorde seguido de calor na Terra. O ano passará os recordes de 2015 e 2014. As agências divulgarão essas informações no dia 18 de janeiro, dois dias antes da posse de Donald Trump.
 
 
Entrevista realizada pela revista Época:
O aquecimento acelerado do planeta é visto de forma mais eloquente nos polos. O derretimento do Ártico e o de partes da Antártica são dois dramas independentes. E não afetam só a vida dos ursos-polares e pinguins (respectivamente) mas impactam todos nós, inclusive aqui nos trópicos. É o que explica o jornalista Claudio Angelo, autor do livro O espiral da morte, coordenador de comunicação do Observatório do Clima, organização dedicada à divulgação do aquecimento global.
ÉPOCA – Seu livro explica as transformações nos polos e os possíveis impactos para o resto do mundo. Como aproximar o que está acontecendo em lugares tão distantes com consequências para o dia a dia dos brasileiros?
Claudio Angelo – O efeito mais óbvio da mudança climática nos polos sobre o brasileiro é o aumento do nível do mar. Você pode não ter a menor ideia das razões pelas quais a Groenlândia está derretendo ou por que o degelo dos glaciares do Mar de Amundsen é irreversível. Mas todo mundo viu no ano passado na ciclovia da Avenida Niemeyer, no Rio de Janeiro, o que acontece quando uma ressaca forte encontra uma engenharia vagabunda. Todo mundo viu a Avenida Atlântica coberta de areia pela ressaca de primavera no Rio em 2016. Em Santos foram duas ressacas assustadoras em 2016. O degelo polar multiplica o efeito dessas tormentas ao aumentar o nível do oceano. Não precisa subir 1 metro no mundo todo; com menos de metade disso no meio do século já seremos forçados a repensar toda a ocupação da costa. De fato, já precisamos fazer isso hoje, porque as ressacas violentas provavelmente já estão mais frequentes. Mas há efeitos menos óbvios de mudanças ambientais nos polos. Por exemplo, a inflação de alimentos de 2010/2011, na qual o preço do trigo subiu no mundo todo, pode ter tido um dedo do degelo do Ártico, que vem alterando os ventos ao redor do Polo Norte e favorecendo padrões de tempo como os que causaram os trágicos incêndios na Rússia em 2010, que arrebentaram a safra daquele ano. E a seca de 2004 e 2005 no sul do país, que causou perda de 80% da safra de soja do Rio Grande do Sul, tem uma correlação forte com alterações nas massas de ar da Antártica, que regem o tempo no sul do país e que têm se alterado por causa do aquecimento global e do buraco na camada de ozônio. Então, num sentido bem real, o que acontece nos polos afeta o seu bolso e a sua mesa.
Ainda se usa muito a imagem do pobre urso-polar para mostrar os impactos das mudanças climáticas. Essa imagem ainda tem efeito? Não parece muito desconectada das preocupações imediatas dos brasileiros?Angelo – Falo dos ursos no livro porque eles foram involuntariamente promovidos a garotos-propaganda da causa das mudanças climáticas, em torno de percepções extremas: de que estariam irremediavelmente condenados, por um lado, ou, por outro, de que a real ameaça a eles é a caça, que é praticada de forma legal em todo o Ártico [os groenlandeses com quem conversei juram que a carne é uma delícia]. Na verdade, ninguém sabe direito qual é o status da maioria das populações de urso-polar, embora algumas estejam declinando. Mas há consenso entre os especialistas de que o aquecimento global é, de muito longe, a maior ameaça à espécie, já que o hábitat dela, o gelo marinho, está sendo destruído. Tentei trazer algum bom-senso a essa discussão. É verdade que os ursos-polares estão desconectados das preocupações imediatas dos brasileiros, mas se partíssemos dessa premissa conservaríamos apenas as abelhas e os morcegos, que têm zero carisma, mas impactam diretamente a produção de alimentos pelos serviços de polinização que prestam. Acho que existe um imperativo ético muito forte na proteção de espécies-bandeira, como a onça, o panda, a baleia e o urso-polar. A maioria dessas espécies está aqui há mais tempo que nós. O urso-polar, por exemplo, tem pelo menos 4 milhões de anos de evolução [o Homo sapiens tem 200 mil] e sobreviveu a pelo menos um evento de extinção em massa no passado. Que direito nós temos de decretar o fim dessa espécie? A outra questão, ora, é que não são apenas os ursos. O risco de extinção de espécies no mundo salta de 3% para 16% com um aquecimento de 4 graus célsius. Isso significa que uma em cada seis espécies estaria sob ameaça pelo aquecimento da Terra. Por ser tropical e megadiversa, a América do Sul é o continente mais afetado, com quase um quarto das espécies sob ameaça. Inclusive as abelhas, que põem comida em nossa mesa e que já estão sumindo de várias regiões do mundo. Então, eu diria que, mesmo que você esteja se lixando para o urso-polar, ainda deveria estar preocupado com os efeitos da mudança do clima sobre os ecossistemas, porque uma das vítimas no fim é você mesmo.
Como podemos usar o calor do verão para potencializar as preocupações com o aquecimento global?Angelo – Com um tanto de criatividade e outro tanto de coragem para driblar a questão da atribuição, que é sempre espinhosa. Nós sabemos que faz calor todo ano no verão – Nelson Pereira dos Santos lançou Rio, 40 graus em 1955, 20 anos antes de a expressão “aquecimento global” aparecer pela primeira vez na literatura científica. Também sentimos instintivamente que alguns verões estão mais quentes do que costumavam ser. Mas, se você for perguntar a um cientista, ele dificilmente dirá que o aquecimento global é a causa desses verões mais quentes. Provavelmente vai lhe empurrar algum floreado estatístico dizendo que a “tendência” no “futuro” é um “aumento da probabilidade” de verões mais quentes. E terá boas razões para isso, já que cientistas precisam mesmo ser cautelosos e é muito difícil atribuir eventos individuais à mudança do clima [embora isso venha sendo feito com cada vez mais frequência]. Mas talvez seja hora de a comunicação pública arrebentar a porta desse armário. Por uma razão simples: hoje, tudo o que acontece com a meteorologia no planeta tem relação com o aquecimento global, porque o mundo está mais de 1 grau célsius mais quente do que estava em 1750. Não dá mais para tirar o aquecimento da Terra da equação. E nós sabemos que um dos efeitos do aquecimento da Terra é amplificar extremos de calor – mas também de frio, seca e chuva. E não é só o calor: há também os insetos e as doenças. No fim do ano passado, saiu um estudo mostrando como o El Niño foi determinante para a epidemia de zika na América do Sul em 2015. As pessoas precisam entender que o verão agora é assim. O que era exceção virou regra. Precisamos entender essa nova realidade como algo permanente e nos adaptar a ela.
Janeiro é o mês em que os brasileiros lotam as praias. Eles sabem o risco que essas praias correm num cenário de elevação do nível dos mares?Angelo – Duvido que saibam. A menos que você seja um turista que passe anos voltando todo ano à mesma praia, dificilmente perceberá mudanças, por exemplo, na extensão da faixa de areia. O “timing” das férias também é infeliz, porque as ressacas são mais frequentes justamente no inverno. A elevação do nível do mar é um tema complicado, porque é um fenômeno insidioso, de início muito lento, sobre o qual há uma enorme incerteza e que no curto prazo só mostra seus piores efeitos durante marés altas ou tempestades.
Podemos usar a praia para gerar interesse pelo tema das mudanças climáticas?Angelo – Sim. As pessoas se conectam com aquilo que está em sua experiência imediata. Sei que não tenho muita moral para falar sobre experiência imediata, tendo escrito um livro sobre os polos [rsrs]. Mas a praia, e tudo o que a cerca, é um bom exemplo de um ativo que pode se perder se não fizermos nada. Uma amiga minha, especialista em adaptação à mudança climática, escreveu um texto belíssimo no ano passado sobre como ela se sentiu ao chegar para treinar vôlei de praia de manhã no Rio depois da ressaca de outubro e descobrir que não havia campo: a água estava na altura das redes. Esse é o tipo de comunicação que falta.
O ano de 2016 bateu recordes de calor (nenhum outro ano teve tantos meses recordistas) e pode mais uma vez ser o mais quente da história. Essa sucessão de recordes ainda comove as pessoas?Angelo – Acho que uma sucessão de recordes climáticos que aparecem quase como uma lista de lavanderia em páginas da internet não comove ninguém, mesmo. Ninguém sabe onde é Fort McMurray, a cidade no Canadá que precisou ser evacuada por causa de um incêndio florestal fora de época. Ninguém sabe direito onde é Fiji, que teve o pior tufão de sua história no ano passado.  A questão é que, cada vez mais, extremos climáticos estão batendo à porta das pessoas. Em Brasília, onde eu moro, em 2015 vi pela primeira vez em 40 anos termômetros de rua marcar 42 graus, durante uma onda de calor que durou mais de um mês e meio em plena primavera e produziu, na mesma semana, as duas temperaturas mais altas já medidas aqui. Tive de comprar um aparelho de ar-condicionado. As temperaturas à noite frequentemente ficam acima de 20 graus, mesmo no verão, que é estação de chuvas. O número de noites quentes decuplicou na cidade entre 1961 e 2015, segundo medições feitas pelo Inmet, que analisou toda a série histórica do DF. Em 2016, entramos em racionamento de água devido à estiagem prolongada – e Brasília está na caixa-d’água do país, sentada no divisor de águas das bacias do Paraná e do São Francisco. Acho que a ficha está caindo para muita gente nos últimos anos. Mas talvez esteja caindo tarde demais.
Qual é a maior dificuldade para explicar a ciência do aquecimento?Angelo – São duas. A primeira, de fundo, tem a ver com a natureza humana: é explicar a própria existência do risco. Nosso cérebro é muito bom em lidar com riscos e ganhos imediatos – fugir do leão agora, ingerir calorias agora. Mas, quando se trata de avaliar riscos de longo prazo, nossa racionalidade simplesmente colapsa. Não evoluímos para isso. Como você diz a uma espécie que passou 200 mil anos de evolução vivendo em restrição calórica constante que essa gordura maravilhosa da picanha que agora ela consome quando lhe dá na telha, sem precisar disputar com as hienas, vai matá-la de infarto daqui a 20 ou 30 anos? A ciência climática nos traz uma dificuldade adicional, que é confrontar-nos com riscos que frequentemente ocorrem além do nosso tempo de vida, como os piores impactos do degelo da Antártica. E que não são riscos diretos para o indivíduo ou sua família próxima, mas em vez disso afetam essa construção cultural recentíssima na história humana chamada “sociedade”. 
 De quem é a culpa?Angelo – Gostaria de poder dizer que a culpa é do baixo nível de escolaridade e alfabetização científica dos brasileiros ou que nós, comunicadores de ciência brasileiros, não estamos fazendo nosso trabalho tão bem quanto deveríamos. Mas o problema é universal. Em fevereiro passado, o IPCC organizou uma reunião em Oslo [onde, muito a propósito, não havia um milímetro de neve no mês mais frio do ano] para discutir a comunicação do painel, que vem falhando. Uma das conclusões mais chocantes, apresentada lá por um cientista português, foi que os sumários executivos dos relatórios do IPCC, que em tese deveriam orientar os tomadores de decisão, estão cada vez menos compreensíveis ao longo do tempo. O que é, evidentemente, uma desgraça, porque as evidências do papel da humanidade no clima estão cada vez mais sólidas.
Como convencer alguém a agir diante de uma ameaça que se concretiza não amanhã ou no mês que vem mas numa escala de tempo de décadas?Angelo – De duas formas: pelo amor e pela dor. Primeiro, é preciso criar na sociedade uma cultura de ação climática – de adaptação aos efeitos do clima e de combate às emissões. Digo “cultura” no sentido mais amplo, em oposição a “natureza”. Isso deve ser um esforço educacional de toda a sociedade, porque estamos agindo contra a força mais poderosa da humanidade: nosso instinto. Sam Harris, neurocientista americano, disse que, se deixássemos tudo a cargo de nossos instintos, começaríamos todos os dias comendo uma caixa de donuts açucarados e terminaríamos todas as noites com um caso extraconjugal. Domamos a nossa natureza para poder viver em sociedade e temos conseguido vitórias importantes em direitos humanos. Não há razão para pensar que não possamos fazer o mesmo com a ação climática. A imprensa, ou o que sobrou dela, tem um papel importantíssimo nesse esforço. Mas precisa perder o medo de comunicar mudança do clima. Com o perdão do mimimi, existe uma clivagem maluca nas redações, onde jornalistas que denunciam ameaças aos direitos humanos ganham prêmios, enquanto jornalistas que denunciam ameaças à estabilidade climática são tachados de “militantes”. A cobertura de clima precisa ser plural, precisa buscar o equilíbrio e comunicar claramente as incertezas – algo que eu espero ter feito em A espiral da morte. Mas isso não equivale a dar espaço igual ao ponto de vista de negacionistas, que via de regra está simplesmente errado. Muitos chefes de redação ainda não entenderam essa diferença e insistem numa objetividade ingênua de tratar isso como uma questão de “outro lado”. A outra forma é algo que a natureza já está se encarregando de fazer: mostrar que uma parte importante da ameaça já se concretizou.
Mudança climática não é mais um abacaxi para nossos bisnetos descascarem; é algo que afeta grande parte da humanidade hoje. A Sociedade Meteorológica Americana analisou 79 eventos extremos climáticos entre 2011 e 2015 e concluiu que mais de metade deles não ocorreria na ausência de aquecimento global, inclusive a seca na Amazônia de 2014-2015. Estamos em pleno novo normal.

Nenhum comentário:

Postar um comentário