sábado, 17 de setembro de 2016

Não, você não tem "personalidade adictiva"



“A vida é uma série de vícios, e sem eles morremos.”
Está é minha citação favorita da bibliografia especializada em adicção, e este comentário foi feito em 1990 por Isaac Marks na publicação British Journal of Addiction. Fez esta declaração deliberadamente provocativa e controversa para estimular o debate sobre se as atividades excessivas e possivelmente problemáticas como os jogos de azar, o sexo e o trabalho podem realmente ser considerados vícios.
É possível que muitos de nós nos consideremos “viciados”a chá, café, trabalho ou chocolate, ou que conheçamos outros que poderíamos descrever como “fissurados” por televisão ou pornografia. Mas essas suposições têm uma base real?
O assunto se reduz, em primeiro lugar, a como o vício é qualificado, porque muitos dos que trabalham nessa área discordam em relação a quais são seus principais componentes. Muitos diriam que as palavras “vício” ou “viciante” são tão usadas em circunstâncias cotidianas que perderam todo o sentido. Por exemplo, dizer que um livro é “viciante” ou que uma série de televisão específica é “viciante” priva a palavra de utilidade no âmbito clínico. Nessas expressões, a palavra “viciante” é usada supostamente de modo positivo, algo que desvaloriza seu verdadeiro significado.

Entusiasmo saudável... ou problema de verdade?

A pergunta que mais me fazem —especialmente os meios de comunicação— é qual é a diferença entre um entusiasmo excessivo saudável e um vício. Minha resposta é simples: um entusiasmo excessivo saudável te dá vida, enquanto que um vício a tira. Também acredito que, para ser classificada como vício, qualquer conduta deveria compreender uma série de componentes-chave, como a preocupação geral com a conduta, o conflito com outras atividades e relações, os sintomas de abstinência quando não se pode efetuar a atividade, um aumento da conduta com o tempo (tolerância) e o uso da conduta para alterar o estado de ânimo.
Com frequência estão presentes outras consequências, como sentir-se incapaz de controlar a conduta e sentir falta dela. Se todos esses sinais e sintomas estão presentes, eu chamaria essa conduta de um verdadeiro vício. Mas isso não impede que outros me acusem de diluir o conceito de vício.

A ciência da adição

Há alguns anos, Steve Sussman, Nadra Lisha e eu publicamos um estudo que examinava a relação entre 11 possíveis condutas viciantes estudadas na bibliografia especializada: consumir tabaco, bebidas alcoólicas ou drogas proibidas, comer, apostar, usar a Internet, amar, fazer sexo, exercícios físicos, trabalho e compras. Examinamos os dados de 83 estudos em grande escala e estabelecemos que a incidência da adicção em um período de 12 meses entre os adultos norte-americanos variava de um mínimo de 15% até um máximo de 61%.
Também consideramos verossímil que, em um período de um ano, até 47% da população adulta norte-americana experimente os sinais de inadaptação próprios de um transtorno de adicção, e que talvez seja útil pensar que os vícios se devem a problemas relacionados ao estilo de vida e a fatores pessoais. Em resumo —e com muitas ressalvas— nosso artigo sustentava que, em um dado momento, quase a metade da população norte-americana é viciada a uma ou mais condutas.
Muitos artigos científicos mostram que sofrer de uma adicção aumenta a propensão de sofrer outras. Por exemplo, em minha própria pesquisa, deparei com jogadores compulsivos alcoólatras e provavelmente todos conseguimos citar pessoas viciadas ao trabalho e à cafeína. Também é comum que quem abandona um vício o substitua por outro (o que os psicólogos chamam de “reciprocidade”). Isso é facilmente compreensível porque o abandono do vício deixa um vazio na vida da pessoa, e com frequência as únicas atividades capazes de preencher esse vazio e proporcionar experiências similares são outras condutas possivelmente viciantes. Isso levou muitos a estabelecer que tais pessoas têm uma “personalidade adictiva”.

Personalidades adictivas?

Por mais que haja muitos fatores que predispõem à conduta de adicção, entre eles a genética e os traços de personalidade, como uma alta instabilidade emocional (ansiosos, infelizes, com tendência a emoções negativas) e baixa conscientização (impulsivos, descuidados, desorganizados), a personalidade adictiva é um mito.
Ainda que haja muitas provas científicas de que as pessoas com adicções são em sua maioria muito neuróticas, a instabilidade emocional em si não é um fator preditivo da adicção. Por exemplo, há pessoas muito neuróticas que não são adictas a nada, de modo que a instabilidade emocional não serve para predizer a adicção. Em resumo, não há provas aceitáveis de que haja um traço de personalidade específico – ou um conjunto deles – que sirva para predizer a adicção e só ela.
O fazer algo de maneira habitual ou em excesso não tem por que ser problemático. Por mais que haja muitas condutas, como consumir um excesso de cafeína ou ver televisão demais, que em teoria poderiam ser qualificadas de viciantes, é mais provável que se trate de condutas habituais que são importantes na vida de uma pessoa, mas que na realidade causam poucos ou nenhum problema. Como tal, não deveriam qualificar-se de adicção a menos que tenham consequências psicológicas ou fisiológicas significativas na vida cotidiana dessas pessoas.
Mark Griffiths é diretor da Unidade de Jogo e professor de Comportamento Adictivo na Universidade Nottingham Trent. Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site The Conversation/.
El País.com

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