domingo, 8 de maio de 2016

Um navio para matar animais com bombas atômicas

 
A imagem era surrealista. Porta-aviões e destroyers (navios de guerra) repletos de cabras, porcos e ratos flutuavam nas paradisíacas águas do atol de Bikini, no oceano Pacífico, em julho de 1946. O Governo dos EUA havia expulsado os 167 nativos das ilhas para bombardeá-las com duas armas nucleares de 20 quilotons cada uma – superiores, portanto, ao artefato de 15 quilotons detonado em Hiroshima. Em 1o. de julho, os militares lançaram em Bikini a bomba Gilda, com a imagem gravada da personagem homônima interpretada por Rita Hayworth no cinema. O anúncio do filme, que estreou naquele mesmo ano, proclamava: “Bela, mortal... usando todas as armas de uma mulher”.
Em 25 de julho, atiraram a segunda, batizada Helena de Bikini, numa alusão a Helena de Troia, a mulher que fez tantos heróis da mitologia grega sucumbirem. Ambas as bombas geraram colunas radiativas de água e coral pulverizado que banharam os assustados animais nas embarcações. Os que não morreram torrados pelas explosões foram fulminados nos dias seguintes pelas fortes doses de radiação ionizante.
A chamada Operação Crossroads envolveu uma frota de 242 navios, 42.000 pessoas, 156 aviões e mais de 5.000 animais, com o objetivo oficial de estudar os efeitos de um ataque nuclear, mas com o desejo oculto de mostrar força à União Soviética depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Quase 100 navios, muitos deles capturados dos alemães e japoneses, foram bombardeados com a quarta e a quinta bombas atômicas da história, depois da do teste Trinity em Alamogordo (EUA) e das de Hiroshima e Nagasaki. E um daqueles navios de Bikini, o porta-aviões USS Independence, afundado a 830 metros de profundidade, ressuscita agora graças a uma expedição científica.
“É a primeira vez que se estuda em águas profundas um fragmento da Operação Crossroads”, diz o arqueólogo marinho James Delgado, chefe da expedição. Esse cientista da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos EUA é um caçador de naufrágios. Encontrou o Carpathia, que resgatou os sobreviventes do Titanic; o Mary Celeste, um bergantim fantasma que foi encontrado navegando sem tripulação em 1872; e o Maud, empregado no Ártico pelo explorador norueguês Roald Amundsen.
Em março de 2015, graças a um submarino cedido pela companhia Boeing, Delgado e sua equipe descobriram os restos do USS Independence nas águas do refúgio marinho da baía de Monterrey, na costa da Califórnia. Agora, a revista especializada Journal of Maritime Archaeology publica a autopsia do porta-aviões e os documentos, finalmente liberados de sigilo, que detalham seu papel nos primórdios da Guerra Fria.
 
O barco ainda exibe sinais dos testes nucleares em Bikini. A primeira explosão, uma atmosférica a 600 metros de distância, varreu sua coberta, seus aviões, suas cabras, seus porcos e seus ratos. Os torpedos armazenados na popa explodiram. De maneira irresponsável, os chefes militares enviaram pouco depois jovens soldados, alguns de 18 anos, ao USS Independence e aos demais navios radiativos para reporem os animais e os equipamentos destruídos. A segunda bomba, submarina e a 1.300 metros do porta-aviões, acabou de transformar o casco de navio em uma casca de ovo flutuante.
“Os efeitos da radiação mataram a maioria dos animais em todos os navios”, afirma Delgado. Os testes serviram para confirmar, se havia dúvidas, que um ataque atômico seria letal para a frota norte-americana. As tétricas gravações da operação, incluídas no documentário norte-americano Radio Bikini (1988), mostram cabras em carne viva tentando comer palha após sobreviver ao cogumelo nuclear.
Depois da Operação Crossroads, alguns dos navios que não afundaram, como o USS Independence, foram rebocados até San Francisco para que os efeitos das bombas fossem estudados detalhadamente e medidas de descontaminação fossem testadas. Ao chegar ao porto, a radiação do porta-aviões alcançava os 60 milirrem a cada 24 horas, quando a dose normal que uma pessoa recebe é de 620 milirrem ao ano, por fontes naturais e exames médicas.
A embarcação serviu de plataforma para a escola de descontaminação radiológica da Marinha dos EUA, mas um dos seus documentos confidenciais de 1949 recomendou seu afundamento, porque o custo de eliminar os poluentes “superaria o valor da sucata do navio”. Em 1951, o USS Independence, finalmente aproveitado como armazém de lixo radiativo, foi afundado em um lugar secreto e a suficiente profundidade para não estar ao alcance dos espiões soviéticos. Outros 85 navios radiativos da Operação Crossroads haviam sido lançados antes ao fundo do oceano. E lá permanece a frota fantasma que deu o tiro de largada da Guerra Fria.
Ciências - El País

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