segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Vida e obras no centro da Terra

Athanasius Kircher criou em 1665, quando não existiam meios científicos para testá-la, uma hipótese completamente absurda: a de que a Terra seria oca e estaria habitada em seu interior. Sua sobrevivência três séculos e meio depois, quando já existem os meios e a ciência sustenta que a Terra não é e nem pode ser oca, talvez surpreendesse o jesuíta alemão. No entanto, se digitarmos a expressão “Terra Oca” no Google, encontraremos mais de 4,5 milhões de resultados.
A sobrevivência fora do campo científico da hipótese de Kircher foi recentemente celebrada por um volume de ensaios que destaca a capacidade excepcional da ideia de uma Terra oca para refletir os anseios de nossa cultura, suas angústias e aspirações. Em Mundo Subterráneo (La Felguera, 2015), Grace Morales, Josep Lapidario e Javier Calvo, entre outros autores, discutem questões como a teratologia marinha, as cartografias infernais e o urbanismo subterrâneo, demostrando que a ideia continua sendo extraordinariamente produtiva para os escritores.
Apesar disso, e embora inclua um grande fragmento do tratado de Kircher, o livro não explica a sobrevivência da hipótese, nem as sucessivas variações que sofreu nos últimos séculos, assunto que se ocupa David Standish em Hollow Earth: The Long and Curious History of Imagining Strange Lands, Fantastical Creatures, Advanced Civilizations and Marvelous Machines Beneath the Earth Surface (Terra Oca: A longa e curiosa história de imaginar terras estranhas, criaturas fantásticas, civilizações avançadas e máquinas maravilhosas debaixo da superfície da Terra).
Standish fala de livros como Symzonia, considerada a primeira utopia escrita nos Estados Unidos, assim como da especulação científica ao redor do tema nas obras de Edmond Halley, John Leslie (que acreditava que o interior do planeta estava iluminado por dois sóis chamados Plutão e Proserpina) e John Cleves Symmes, autor da hipótese de que as portas para as profundidades seriam encontradas nos polos.
Ao longo de sua história, a Terra oca teria sido, nesse sentido, e, alternativamente, uma desculpa para abordar os mais variados temas. Assim, na fantasia pulp de 1892, The Goddess of Atvatabar (A deusa de Atvatabar), a existência de um submundo oferecia a oportunidade para continuar com a aquisição de território por parte dos EUA. Para Edgar Allan Poe (A Narrativa de Arthur Gordon Pym) e Howard P. Lovecraft (Nas Montanhas da Loucura).
 constituía a base de um horror imprevisível, e para os franceses Alexandre Dumas (Isaac Laquédem) e Júlio Verne (Viagem ao Centro da Terra) era um bom lugar para explicar as teorias da evolução das espécies e da origem do homem.
O submundo também serviu como repositório das ansiedades geradas pela tímida aquisição de direitos por parte das mulheres ocidentais, como em Mizora, o romance de Mary E. Bradley Lane de 1881, onde elas exterminaram os homens. Também em At the Earth’s Core (No Centro da Terra), do popular Edgar Rice Burroughs, uma raça de pterossauros inteligentes e violentos chamados Mahar infunde terror nos personagens quando estes descobrem que todos os Mahar são do sexo feminino.
Antes de se tornar o lugar onde os nazistas estariam escondidos ou os discos voadores pousavam, a Terra oca também foi o âmbito para a promoção de ideias de pureza racial e religiosa: em Symzonia, por exemplo, os habitantes do mundo subterrâneo são vegetarianos, abstêmios, praticam a democracia e são brancos e imensamente ricos; e em A Narrativa de Arthur Gordon Pym, os selvagens têm até os dentes negros. Mas ninguém foi mais longe em suas visões infraterrenas que o norte-americano Cyrus Reed Teed, que por volta de 1869 decidiu que a Terra é oca e côncava e que nós vivemos no interior, revelação que o levou a fundar o Koreshianismo, uma religião bastante popular em sua época.
Se essas visões não são fossem suficientes para explicar a persistência da ideia da Terra oca – apesar de todas as provas científicas em contra –, talvez ela possa ser encontrada em uma certa resistência remanescente contra as realizações científicas que teriam expulsado o mistério do mundo. Assim, a celebração nostálgica da Terra oca e das visões artísticas que produziu no Mundo Subterrâneo, e a crença inconsistente de que a ciência e os meios de comunicação estariam mentindo para nós, que abunda no esgoto da Internet (onde, claro, a ideia da Terra oca compete com a da Terra plana) seriam maneiras de satisfazer o desejo de que nem tudo seja o que parece, e mostra que vivemos em uma época de impotência e frustração frente a ameaças incompreensíveis, mas bem reais.
Assim como na também subterrânea Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, o submundo é um reflexo daquilo que se encontraria acima, em nosso mundo, mas esse reflexo não está tão distorcido quanto parece à primeira vista: de fato, como fica evidente no recente filme de Ulrich Seidl, No Porão, os dois mundos não podem ser mais parecidos.
EL PAÍS

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