segunda-feira, 15 de junho de 2015

Como e porque o mapa não prova que fomos visitados por alienígenas

O fragmento remanescente do mapa de Piri Reis de 1513 (Foto: reprodução)
De todos os artefatos criados pela humanidade, talvez apenas a Grande Pirâmide de Gizé tenha sido mais abusada por promotores de teorias pseudo-históricas do que o mapa de Piri Reis de 1513. Nos quase 100 anos desde que o único fragmento restante desse mapa foi descoberto na Turquia, inúmeros livros, filmes e documentários foram produzidos para tentar convencer o público de que a carta tem uma precisão quase sobrenatural, inexplicável com base nos conhecimentos geográficos da época em que foi desenhada.
Dependendo do autor citado, essa assombrosa precisão só pode ser explicada se o autor do mapa, o almirante otomano Muhiddin Piri (1465?-1554), tivesse tido acesso a informações produzidas por uma supercivilização perdida, por alienígenas ou, claro, por uma supercivilização perdida com a ajuda de alienígenas. Entre essas hipóteses dividem-se nomes como Jacques Bergier (do popular, ainda que comicamente equivocado, “Despertar dos Mágicos”), Charles Hapgood (cujo livro “Maps of the Ancient Sea-Kings” influenciou praticamente todos os autores que vieram depois) e o indefectível Erich von Däniken.
O mapa de 1513, que mostra a América do Sul, o Caribe e América Central, além de parte da costa ocidental da Europa e da África, tem muita coisa de interesse para o historiador sério: a carta possivelmente incorpora informações extraídas de um mapa hoje perdido, mas desenhado por (ou sob a supervisão direta de) Cristóvão Colombo.
Seu desenho da costa sul-americana incorpora muita informação que, na época, devia ser recentíssima, compilada originalmente por navegadores portugueses e, segundo o cartógrafo Gregory McIntosh, traz o que pode ser a mais antiga menção cartográfica conhecida do nome “Rio de Janeiro”, que aparece como “Sano Saneyro”. Inclui ainda um breve relato do descobrimento do Brasil. Curiosamente, na versão reproduzida por Piri Reis foi uma tempestade, e não uma calmaria, que desviou Cabral do Caminho das Índias.
Defensores de hipóteses “extraordinárias” a respeito da origem do mapa, como Charles Hapgood, costumam mencionar a precisão do desenho da costa brasileira, que seria impensável para o século 16, como uma de suas evidências mais fortes. Mas McIntosh, em seu livro fundamental “The Piri Reis Map of 1513”, aponta uma série de outros trabalhos cartográficos do período de 1502 a 1513, de autoria de navegadores portugueses, que têm o mesmo grau de precisão – ou de imprecisão: por exemplo, mostrando a foz do Rio Amazonas duplicada e a Ilha de Marajó como uma península – que o de Piri Reis.
O cartógrafo especula que Hapgood e outros pesquisadores não compararam o mapa de 1513 a outros mapas manuscritos da época, que eram os usados para navegação e requeriam grande fidelidade ao contorno real da costa, e sim a mapas impressos, que eram mais ilustrativos e propensos a erros e exageros.
O mapa incorpora várias idiossincrasias da época: ele não usa um sistema de latitude e longitude, mas se orienta por uma série de rosas dos ventos. As costas da África e da América do Sul têm escalas diferentes. Há ilustrações de animais míticos e o registro de ilhas e terras inexistentes. Enfim, é um saboroso documento de uma época em que mitologia, sonho, exploração e cartografia viviam em colisão e ebulição. Certamente não é cópia de uma carta de navegação alienígena.
Há quem diga que o que o mapa corresponde a uma projeção azimutal equidistante – um tipo de mapa usado, entre outras finalidades, em navegação aérea – do globo terrestre, centrada na cidade do Cairo. Von Däniken chega a compará-lo a uma foto de satélite. Isso faz sentido?
Não. Primeiro, o mapa de 1513 que chegou ao século 20 é apenas um fragmento: o mapa original provavelmente incluía toda a Europa, África e Ásia. É impossível afirmar como o restante da carta se encaixaria numa projeção azimutal moderna. Segundo, mesmo a parte que temos não se encaixa lá muito bem, a menos que se use de mão pesada para fazer várias “correções”. Como escreve McIntosh, “é como o caso do historiador que ‘provou’ que Colombo era, na verdade, Cleópatra: basta mudar seu nome, nacionalidade, sexo, época, etc.”.
Outra alegação muito popular é de que o mapa mostra a costa da Antártida. Como esse continente só começou a ser mapeado no século 19, a única explicação seria... aliens?
Na verdade, o mapa mostra uma massa de terra meridional ligada à América do Sul. Isso em si já representa uma incongruência – a Antártida, afinal, está separada das Américas pelo Estreito de Drake – mas não é a única: no desenho de Piri Reis, essa massa conecta-se ao continente sul-americano numa altura que, estima McIntosh, ficaria só um pouco abaixo do Trópico de Capricórnio. É como se a Antártida fosse parte da Região Sudeste do Brasil.
Mas, alguém poderia perguntar, como Piri Reis sabia da presença de um continente ao sul da América do Sul, mesmo se não tivesse uma boa ideia de seu tamanho e localização?
A resposta está no contexto histórico: o geógrafo Cláudio Ptolomeu (90-168), cuja obra ainda se mantinha influente na era das Grandes Navegações, postulara a existência de uma grande “terra incógnita” no hemisfério sul. Acreditava-se que esse continente desconhecido era necessário para equilibrar o peso do hemisfério norte e manter a Terra em seu eixo. O mapa de Piri Reis apenas segue essa convenção.
Galileu.com

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