terça-feira, 20 de agosto de 2013

Adão e Eva na era da genômica

Dados de DNA recentemente publicados numa das maiores revistas científicas do mundo revelam que, ao contrário do que se acreditava, Adão e Eva viveram mais ou menos na mesma época. Não é um alívio? Eu não sei como os cientistas estavam conseguindo dormir achando que o casal primordial nunca tinha se encontrado.
OK, é claro que não estamos falando de um único casal primordial que deu origem à humanidade inteira há um punhado de milênios. O Adão e a Eva aos quais me refiro são, respectivamente, a “Eva mitocondrial” e o “Adão do cromossomo Y”, uma dupla de ancestrais anônimos aos quais é possível remontar as linhagens genéticas de todas as mulheres (primeiro as damas) e de todos os homens vivos hoje, respectivamente. O novo cálculo, publicado no começo deste mês na revista americana “Science”, indica que eles viveram há pouco mais de 100 mil anos.
Mas atenção para as margens de erro: Eva teria caminhado pela Terra (certamente em algum lugar da África) entre 99 mil e 148 mil anos atrás; Adão, entre 120 mil e 156 mil anos atrás. Temos uma sobreposição temporal bem mais ou menos entre os dois, portanto — nenhuma garantia de que eles tenham formado uma família feliz (ou mesmo uma na qual o irmão mais velho resolveu quebrar o pau com o mais novo…).
Já explico. A questão é que, para fazer essas contas, os cientistas estão usando pedacinhos muito pequenos da herança genética que cada um de nós carrega. Começando de novo por Eva: o DNA mitocondrial, ou mtDNA, está presente apenas no interior das mitocôndrias, as organelas (“órgãos” das nossas células) que são uma espécie de gerador de energia microscópico. Ocorre que o mtDNA, via de regra, só é transmitido de mãe para filha ou filho (isso acontece, grosso modo, porque há muito mais mitocôndrias no óvulo da mãe do que nos espermatozoides do pai). Fora algumas exceções bizarras que não vêm ao caso aqui, isso significa que o mtDNA permite traçar com alta precisão a linhagem materna — e só a materna — de uma pessoa, porque esse tipo de material genético não passa pela recombinação (mistura de genomas) típica da reprodução sexual da nossa espécie.
Inverta o que eu disse para a linhagem masculina, e temos a situação do cromossomo Y, com a diferença importante de que a marca genética da macheza está contida no nosso DNA “principal”, aquele formado por 23 pares de cromossomos, em vez de vir de uma organela. Lembre-se: em geral, mulheres da nossa espécie possuem dois cromossomos X, enquanto homens possuem um cromossomo X e outro Y. (Aliás, nem é preciso herdar o cromossomo Y inteiro para ser geneticamente macho; pedacinhos dele são suficientes.)  Para ser preciso, tem até uns trechos do Y que se recombinam com o X, nas pontinhas do dito cujo, mas dá pra excluí-los do cômputo geral sem grandes problemas.
GENEALOGIAS
Agora vem a questão genealógica. Como eu disse, em princípio, nem o DNA do Y nem o mtDNA se recombinam com outros pedaços do genoma. As únicas alterações que eles sofrem, portanto, são mutações — trocas, “apagamentos” (ou deleções, como dizem os geneticistas) ou inserções de “letras” do DNA. O que os pesquisadores descobriram é que, quando mapeamos todas as mutações hoje existentes em gente do mundo inteiro, comparando-as, por exemplo, com as sequências equivalentes nos chimpanzés (nossos parentes vivos mais próximos, caso você tenha esquecido) é possível traçar uma espécie de árvore genealógica da linhagem materna e da linhagem paterna de todas as pessoas vivas hoje.
É possível, em outras palavras, usar métodos estatísticos e informações arqueológicas pra saber quais mutações vieram primeiro e quais vieram depois (exemplo: sabemos que os índios das Américas descendem muito provavelmente de gente da Sibéria, então mutações no mtDNA indígena deveriam acontecer, muitas vezes, depois das siberianas, o que de fato acontece). No fim das contas, as sequências de DNA remontam (“coalescem” é o termo que os cientistas em geral usam) a um homem e a uma mulher.
Usando uma espécie de “tique-taque” médio que indica o tempo que transcorre entre uma mutação e outra, além de uma calibragem baseada em fósseis e dados arqueológicos, os cientistas conseguem usar o número de mutações para dizer quando esse moço e essa moça viveram. E aí é que surgiu o “problema”, já que muitas estimativas iniciais mostravam que, enquanto nossa Eva teria vivido há uns 200 mil anos, Adão seria um rapaz de 70 mil anos atrás, mais ou menos.
A rigor, isso não seria tão difícil de explicar. De novo, o fato de hoje só existirem descendentes do mtDNA e do cromossomo Y dessas duas figuras não significa que só existem descendentes deles hoje.  A questão é que é muito fácil sumirem linhagens desses dois pedaços pequenos do genoma. Para entender isso, pense no seguinte: se você for mulher, está carregando a versão específica do mtDNA da sua mãe, talvez com uma mutação diferente da que a sua avó tinha. Por um desses acasos do destino, você só tem filhos homens. Pronto: o mtDNA da sua mãe sumiu da população. Da mesma maneira, se você for homem e só gerar filhas, o cromossomo Y do seu pai sumiu do reservatório genético da nossa espécie — a não ser, é claro, que você tenha um irmão com filhos.
Outro fato relevante: em qualquer espécie de mamífero, inclusive a nossa, tende a haver mais disparidade de sucesso reprodutivo entre machos do que entre fêmeas — o que é só um jeito enrolado de dizer que homens têm mais chance de gerar um monte de filhos (se forem muito mulherengos) ou nenhum (se forem completamente ineptos na hora de conquistar mulheres) do que mulheres. Em média, claro, veja bem. Traduzindo isso para o universo do cromossomo Y, essa disparidade faria com que o “último ancestral comum” desse pedaço da herança genética humana fosse, talvez, mais recente que o “último ancestral comum” do mtDNA.
VIÉS
Parece, no entanto, que a diferença de datas era só um resultado do viés de amostragem, ou seja, relativamente poucas amostras do cromossomo Y tinham sido “lidas” pelos cientistas, e por isso a reconstrução da árvore genealógica ficou mais recente do que deveria. A equipe de David Poznik, da Universidade Stanford (EUA), usou DNA de 69 homens do mundo todo  – incluindo gente da Namíbia, pigmeus do Congo e do Gabão, berberes da Argélia, paquistaneses, cambojanos, siberianos e maias do México. Em paralelo, uma equipe italiana analisou o Y de 1.204 homens da Sardenha, ilha importante por causa de sua longa história de relativo isolamento e por sua pré-história interessantíssima. E os resultados foram aqueles que você leu no segundo e terceiro parágrafo desse post.
O que significa tudo isso? Pode ser que o Adão e a Eva genômicos tenham sido membros da mesma população africana. Os dados nos ajudam a traçar a história das migrações e interações dos grupos humanos por meio da genômica. Mas, acima de tudo, mostram a nossa profunda unidade como espécie, por mais divididos que estejamos hoje. No contexto da história da Terra, 100 mil anos não é nada, minha gente.
Folha.com
 

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